sexta-feira, 30 de novembro de 2012

A pele enxerga melhor



Para Lisiane

Eu tenho uma inclinação por sardas e cabelos ruivos. Mulheres com sardas costumam não gostar, é curioso.

Quando criança, uma amiga colava fita crepe no rosto e puxava acreditando que as sardas sairiam junto. Ela não respeitava as sardas, confundia com espinhas. Ficava furiosa com Deus, que pintou seu corpo sem permissão. Coloriu seus braços enquanto dormia no ventre. Abominava a idéia de ser diferente, tantos sinais de nascença como o número de estrelas. Sofria com brincadeiras alusivas à ferrugem.

Tanto que não usava dedos ou palitos de fósforo para aprender a contar na escola, mas as sardas. Enchia a tez de cremes da mãe para sarar daquilo que era uma virtude. Agredia as pintas como uma catapora, uma doença, uma tristeza de guitarra. Encabulada com os apelidos que poderia receber. Se um menino a observava com admiração, já tomava como crítica e virava o pescoço para não se machucar. Fugia de si, como se o véu fosse a própria face. Era uma muçulmana de sua timidez.

Enquanto ela queria tirar as sardas, desejava tê-las. A pele enxerga melhor com sardas. São os óculos naturais da pele. Fogo que levemente doura. Brasa singela que acomete as árvores e o crepúsculo no outono. Pão casado com a madeira.

As sardas são uma procissão da boca. Não retiram beleza, mas acentuam. Fazem qualquer rosto voar como os cabelos, subir como um vestido. Não deixam nenhum rosto brincar sozinho. São marcas de lábios das folhas. Uma chuva de folhas. O cheiro de alfazema das folhas.

O ouvido torna-se mais próximo das sobrancelhas, mais próximo do nariz, mais próximo do queixo. É possível acompanhar toda a vizinhança dos telhados. As sardas são balas de goma, o açúcar das balas de goma. Elas fazem o corpo rir mesmo quando está indisposto. Uma mulher com sardas tem jeito de praça na lomba. Eu só subia a lomba da rua porque tinha uma praça no meio do caminho para brincar e recuperar o fôlego. A praça sempre foi a véspera de minha casa. As sardas são a véspera do sol.

Um rosto com sardas, pode reparar, é bem iluminado. Não pela luz que entra, pela luz que já estava lá.

Fabrício Carpinejar

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